quinta-feira, 26 de julho de 2012

O OLHAR DO ELISMAR SOBRE A LEI DA DIVULGAÇÃO DOS SALARIOS

Maurelio Menezes

Eu já tentei convencer algumas vezes o Elismar,meu colega no Grupo de Pedsquisa Movimentos Sociais e Educação,  a criar um blog onde poderia expor sua visão de mundo. Algo simples como esse meu aqui... Ele sempre arruma um argumento desse que os preguiçosos digitais têm na manga da camisa para se desculpar... Já disse a ele que seria interessante inclusive para que ele fizesse a divulgação via midias sociais, pois basta colocar lá o link e o membro da rede tem acesso ao texto integral... mas ele sempre dá um jeito de desconversar, tomado pela sua eterna preguiça digital... Por isso estou publicando aqui esse texto dele. Você pode até não concordar, mas é o olhar dele e vale a pena ser lido. No mínimo será mais um argumento para reflexão. E aí não o argumento de um preguiçoso digital, mas de alguém que se dedica ao estudo do mundo em que vivemos
Faça bom proveito:

O CARÁTER POLÍTICO-IDEOLÓGICO DA PUBLICAÇÃO DOS SALÁRIOS DOS SERVIDORES PÚBLICOS

Elismar Bezerra Arruda
Um dos maiores pensadores e revolucionários do século XX foi o italiano Antônio Gramsci. Condenado pela justiça italiana a serviço do fascismo de Mussolini, Gramsci continuou e desenvolveu, inclusive e especialmente na prisão, a filosofia marxista com o objetivo de “elevar intelectual e moralmente” as massas trabalhadoras no sentido da “sociedade regulada”. A contribuição desse italiano da Sardenha para a Filosofia e para a Política é reconhecida, hoje, no mundo inteiro. São muitos os movimentos, lutas e organizações dos trabalhadores do Brasil e da América Latina, que se utilizam das elaborações teórico-metodológicas de Gramsci para entender a complexa e contraditória realidade em que vivemos e, fundamentalmente, para orientar suas políticas. Não é fácil entender a realidade, ainda mais num mundo em que os interesses do capital, expressos e defendidos por todos os meios (pacíficos e violentos) pela empresa privada, tenta a todo o momento consolidar na cabeça das pessoas que pensar é desnecessário, que filosofia é coisa de desocupado, lunático, etc. O interessante é que, sabendo que as pessoas não param de pensar e pensam sempre a partir das materialidades que as fazem tristes, alegres, passivas ou não, etc., o status quo urde e tenta impor “o seu” modo de pensar e “o seu” pensamento.
Assim, especialmente ao longo das últimas três décadas, foi sendo consolidada na sociedade brasileira a idéia de que os “políticos” são a causa de todos os nossos males; que, de um modo geral, são todos ladrões, incapazes e preguiçosos. Essa idéia para fazer-se mais completa e competente no seu desiderato, estendeu a mesma caracterização a tudo que é “público” e a todos os que trabalham na Administração Pública, nos Serviços Públicos – seja como dirigente, seja como simples servidor. Essa idéia, ou essa forma de conceber a chamada “coisa pública” (ou Estado e os governos), não caiu do Céu, embora se nutra muito dos elementos da religião; trata-se de um modo de pensar que adjetiva, qualifica tudo e a todos, conforme os interesses da empresa privada. É dessa forma que os serviços públicos e seus trabalhadores, de modo geral, são concebidos como coisa desprezível do ponto de vista da produção, da qualidade, da produtividade e da ética. Os meios de comunicação reforçam isso diuturnamente, sedimentando a compreensão de que esses serviços são o lugar do desperdício, da indolência, do uso irresponsável e descontrolado dos recursos públicos e da corrupção; desse modo, o “público” ficou como coisa que não presta, enquanto a “empresa privada” significa sempre qualidade e decência.
Esse é um problema ideológico grave, porque, não obstante a patifaria de muitos “políticos”, o que se divulga sobre o Serviço Público é uma fraude que deforma a consciência coletiva. Ao se divulgar esse pensamento e generalizar esse discurso contra os servidores, colocando-os na mesma “balança” dos “políticos profissionais” corruptos, cria-se uma cortina de fumaça que cega a população e permite à empresa privada fazer o que bem entende com “a coisa pública”, impunemente. Essa degeneração conceitual dos “políticos” e dos serviços públicos, que os qualificam definitivamente como corrompidos e, assim, como sujeitos e instrumentos que jamais estarão a serviço da sociedade, como inimigos malfeitores da sociedade, acaba por livrar o sistema do capital, o capitalismo, de qualquer responsabilidade pela realidade econômico-social em que vivemos; então, divulga-se que é a “índole”, a “natureza” deformada e “pervertida” desses indivíduos a causa dos nossos problemas econômicos e sociais. A empresa privada inocula nas massas trabalhadoras uma espécie de ódio ao que é público, afastando-as da política e do Estado, para que ela, a empresa privada, aproprie-se do Estado como instrumento a serviço da realização dos seus interesses; ao tempo em que se eleva aos olhos dessas massas como solução definitiva para todos os males da sociedade. É assim que, diante do fracasso da empresa privada em resolver os problemas sociais, porque não é da sua natureza promover o desenvolvimento social, descaradamente, então, atribui-se ao “público” e aos servidores públicos a culpa pela incapacidade da empresa privada resolver tais problemas.
A sociedade age como se, mesmo desconfiando dos interesses individuais e mesquinhos do lobo, mas “sabendo” (mediante as propagandas realizadas pelo próprio lobo sobre si mesmo) da sua força e do seu poder, preferisse ver na passividade e mansidão do carneiro a mesquinhez, o egoísmo e a voracidade do lobo; assim, veste o bicho com pele de carneiro e ainda que o veja uivar como lobo, comer como lobo, viver como lobo, prefere acreditar na versão que o próprio lobo dá de si mesmo, isto é, como sendo um não-lobo. O interessante é que, pela sua própria natureza, o lobo nunca se deixou confundir com carneiro, ao contrário: exibe arrogantemente para a sociedade conformada essa diferença como poder, como superioridade. É assim que mesmo testemunhando sempre a empresa privada praticar ações que só atendem aos seus próprios interesses privados, o lucro, como é da sua natureza, a sociedade prefere acreditar na empresa privada, desprezando o “público”, a política, os serviços públicos e seus servidores.
Não é fácil convencer as pessoas de que esse pensamento “privatista” é incorreto e nefasto, mas, pior é aceitá-lo pacificamente; ainda mais porque diariamente os meios de comunicação estão a repercutir com muito barulho as patifarias e desmandos praticados na Administração Pública envolvendo “políticos”, servidores e empresários, como se esses desmandos estivessem em todos os órgãos e praticados por todos os servidores. Aliás, é interessante observar que quando empresários estão envolvidos com corrupção, nunca são tratados no noticiário como tais e, sim, como “contraventores”, “bicheiros”, “lobistas”, o diabo, mas, nunca como empresários. Assim, as dificuldades para entendermos a realidade se acentuam, porque essa repercussão é apresentada como expressão real da democracia, da liberdade de expressão, isto é, como confirmação de que vivemos em um país democrático. Mas, como diz o poeta: “as aparências enganam, ao que odeiam e aos que amam”; porque, então, todo esse barulho? Se neste momento deste artigo eu afirmasse que os meios de comunicação estão corretos e que o que é publico não presta, certamente teria a concordância de muita gente. Mas não seria correto. Na verdade, precisamos entender o caráter pedagógico daquela atitude dos meios de comunicação: de fato, eles usam esses casos para fazer a sociedade acreditar definitivamente, especialmente as massas trabalhadoras e a classe média, que aquilo ali e nada mais é a causa de todos os problemas que a sociedade enfrenta.
É óbvio que a corrupção, o desmando, etc. degeneram a nossa vida, mas a divulgação insistente dos casos de corrupção na administração pública como a causa de todos os males, longe da aparente restauração ética e moral que dizem objetivar, está servindo, de fato, para preservar um sistema que tem na sua natureza, na sua gênese a perversidade da exploração, da violência e da danação em geral. Na verdade, o que objetivam é desqualificar não só “público” em si, mas, fundamentalmente, destruir a idéia de que o coletivo, a solidariedade, a comunidade, o “estatal” e a comunhão, enquanto elementos éticos-políticos, podem caracterizar um novo modelo econômico-social de vida superior e em negação ao individualismo, à competição e ao egoísmo do lucro. É por isso que a má qualidade da Educação, o crescimento vertiginoso da Violência, a falta de atendimento adequado e competente na Saúde, o Desemprego, etc., são apresentados como produto da incompetência e da corrupção, etc. na “coisa pública”. Do mesmo modo podemos entender porque, mesmo não tendo melhorado em nada o abastecimento e a qualidade da água em Cuiabá, depois da privatização, os meios de comunicação não apresentam mais o problema como fruto da incompetência, da leniência, etc., mas, simplesmente, como problema técnico prestes a ser resolvido. Muda-se a qualidade da crítica para preservar a empresa privada e seguir desqualificando o “público”. É nesse sentido que precisamos entender a lei que determina a publicação dos salários dos servidores públicos em todo o país.
Qualquer brasileiro medianamente informado sabe que nos Serviços públicos apenas os altos escalões do Judiciário, do Executivo e do Legislativo ganham bons salários; ainda assim, não acho que esses altos salários seja o problema, o “mal-maior”, mas, sim, o conteúdo do seu ser jurídico-político de afirmação da lógica do capital. A quase totalidade dos servidores ganha muito mal, entretanto, a idéia que está divulgada e assimilada pela população em geral é a de todos são marajás e, desse modo, é justificada a exigência da publicação dos salários de todos os servidores públicos. Essa exigência se insere naquela idéia do status quo de desqualificar o “público”, de apresentá-lo como indecente, desonesto e incapaz; a publicação dos salários dos servidores públicos os constrange, não por terem o valor dos seus salários divulgados, mas, porque os pressupõem, indistintamente, como recebedores de vencimentos ilegais e imorais e, assim, sorvedouros dos recursos do povo. A exigência é uma indecência. Aos olhos da sociedade manietada pelas idéias “privatistas”, a lei, revestida por um discurso moralista, é apresentada como medida moralizadora que dará transparência à Administração Pública, etc.; mas, não é nada disso.
Fosse para dar transparência à aplicação de todos os recursos públicos (com o que concordo), todas as empresas que recebem recursos públicos (na forma de incentivos fiscais, empréstimos, perdão de dívida, subsídios, etc.) deveriam ser obrigadas a publicar os salários e pró-labore de todos os seus funcionários e diretores. Se é para dar transparência na aplicação dos recursos públicos, porque os “proponentes” de tal lei não exigiram isso das empresas privadas? A boa vida que empresários que recebem recursos públicos estão levando, curtindo as belezas e mordomias caríssimas em paraísos turísticos do mundo inteiro não é corrupção, não é uso indevido ou desvio dos recursos públicos? A exigência da publicação dos salários dos servidores públicos, de fato, não é mais que mais uma tentativa de satanizar o que é público em favor da sacralização da empresa privada, do individualismo, da concorrência e do lucro. Trata-se, de fato, de uma atitude político-ideológica da classe proprietária-governante, urdida e aplicada no sentido de desnaturar as iniciativas de mudanças da sociedade atual na perspectiva dos trabalhadores. Ao fim e ao cabo, o que a classe proprietária-governante quer é demonstrar por todos os meios, inclusive pela mentira, que o que é público, que qualquer governo, sempre será empecilho para o “pleno desenvolvimento” da sociedade; que não há saída pela via do “público”, do Estado, e que, dessa forma, o que resta como correto e competente para fazer funcionar a sociedade é apenas a empresa privada, os empresários. Excluem-se, assim, os trabalhadores que, sem propriedades, tem só a própria capacidade de trabalhar como mercadoria para vender e garantir a própria existência.
Por fim, podemos concluir que a desqualificação feita diuturnamente pela classe proprietária-governante através dos meios de comunicação em relação ao que é “público”, à “associação” solidária como forma de viver em comunidade, configura-se como a sua concepção de mundo que é imposta às massas trabalhadoras para que a sociedade siga sendo o que é. Na verdade, a classe proprietária-governante nega o Estado às massas trabalhadoras para ficar com ele só para si, pois, sabe a importância e a força que o Estado representa. Assim, quando sataniza os servidores públicos, a classe proprietária-governante está educando os trabalhadores em geral para que não percebam e entendam as possibilidades político-administrativas que a Administração Pública tem se apropriada pelos trabalhadores; mais que isto, quer impedir as massas trabalhadoras, mediante a participação transformadora nas estruturas político-administrativas da Administração Pública, de se educar na perspectiva destas se apropriarem não só da Administração Pública, mas do Estado.  De fato, a desqualificação dos serviços e dos servidores públicos tem uma razão estratégica para o sistema do capital.
É por tudo isso que a sociedade, e não apenas os servidores públicos, precisa compreender o que está sendo urdido e lhe imposto como verdade derradeira. É preciso as massas trabalhadoras e a classe média saberem da natureza da Administração Pública, dos Serviços Públicos e porque estão sendo tratados como estão, pois, sabendo corretamente disso, poderão apropriar-se do “público” e fazê-lo instrumento da construção de um novo modo de viver e de produzir a vida. Para começar, podemos exigir, por exemplo, dos nossos parlamentares que apresentem projeto de lei impondo às empresas privadas que recebem ou receberem recursos públicos (sob qualquer forma) a publicação dos salários e pró-labore dos seus diretores e funcionários. Trata-se de recursos públicos dados à empresa privada que precisam ser controlados pela sociedade. Ou será um sacrilégio exigir algum tipo de controle da empresa privada? Algum dos nossos parlamentares, estaduais e federais, tem coragem de, não só propor, mas, de lutar por isso?


 

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