Hoje na Folha do Estao de Mato Grosso, tanto na Edição Impressa quanto na Diigital meu olhar sobre os 295 anos de Cuiabá, uma menina que está sendo muito maltratada exatemente por quem deveria enchê-la de cainho.
ERA UMA VEZ...
UMA MENINA
Quando
ela nasceu, era um daqueles bebês apaixonantes que só nascem um em vários
séculos. À sua volta os rios e riachos corriam fazendo aquele barulho gostoso
que faz bem aos ouvidos e à alma. As flores e as árvores pareciam guardar seus
passos. No solo a imensidão do verde. No céu a imensidão do azul. O destino
dela estava traçado. Seria, em poucos anos, a mais atrativa do país. O ano era
1719 e logo a fama da riqueza daquela menina correu léguas e mais léguas. Em
pouco tempo nela havia 30 mil pessoas, aventureiros em busca de parte de suas
riquezas... A corrida ao encontro dela foi tão grande que decidiram que ela
seria a capital de São Paulo. Nada mais justo, porque àquela altura, 1723, ela
já era a cidade mais populosa do país.
Depois,
como chegaram eles se foram... Restavam poucos E os contatos com a capital, que
voltara a ser São Paulo, era feito via bandeirantes desbravadores. Eles saiam
navegando pelo Tietê, aquele mesmo que alguns séculos depois foi transformado
pelo homem num grande esgoto, viravam à esquerda no rio Paraná, entravam pelo
rio Paraguai, navegavam até o encontro de suas águas com as do Cuiabá e vinham
até o Porto, atracando às margens da
Prainha, um córrego lindo, cuja nascente alguns quilômetros acima ela bonita de
se ver. No Porto ficavam as embarcações maiores e nas menores eles traziam até
o encontro da Rua de Cima com a Rua de Baixo e a Rua do Meio, víveres, que
trocavam por ouro e pedras preciosas...
Os
anos se passaram... As margens da Prainha jovens mancebos com seus corpos
queimados passavam o tempo envolvidos na pesca, especialmente do pintado, que
abundava no córrego, que tinha em alguns lugares águas profundas. “Era ali
–lembrou certa vez a professora Dunga Rodrigues- que as jovens da sociedade iam
passear.” O passeio, é claro era uma desculpa.
Do outro lado do córrego, as lavadeiras, que tudo sabiam, que tudo
falavam...
Eram
tempos em que após as grandes chuvas, a criançada saia catando ouro nas ruas. E
sempre achavam. Eram tempos de “cajiú”, de pixé, de cururu e siriri. Mas a
modernidade acabou com isso. O Córrego da Prainha ganhou primeiro, paredes,
depois foi coberto, escondido, porque era vergonhoso ver no que ele se
transformara: um grande esgoto, um Tietê em miniatura.
295
anos depois, é triste, muito triste, lembrar como a história conta como foi
essa menina, uma menina, com um coração sem tamanho, capaz de receber nele de
forma aberta todos que até ela chegam. E chegam pelos mais diversos motivos.
Chegam porque anteveem uma nova oportunidade. Chegam porque são obrigados por
transferências compulsórias, chegam para “assuntar” o ambiente. Chegam por
chegam. Chegam porque onde estavam se tornara impossível de viver. Chegam e
ficam, a maioria. Chegam e vão embora, a minoria.
Hoje,
aquela menina que nasceu em 1719, não está mais rodeada de verde. Seus rios e
riachos foram transformados em esgotos ou quase esgotos. Muitos sumiram,
deixaram de ser perenes porque suas nascentes foram assassinadas pela ação
destruidora do homem. Os serviços que a cada ano tornaram-se mais necessários
porque a menina cresceu, melhoraram muito, mas só na propaganda. Na realidade
estão a cada dia piores.
Não existe um sistema de saúde digno para aqueles que
vivem com a menininha de 295 anos. Não existe uma educação que privilegie o
crescimento do ser humano como Ser Humano. Transporte nem se fala. Não existe
estrutura para nada. Um chuvisco de cinco minutos e tudo está alagado. Com
certeza, ao nascer, aquela menina não imaginava que um dia passaria por isso.
Nem ela, nem ninguém.
De
qualquer forma, menina, parabéns pelos seus 295 anos. Que cada um de nós
façamos uma autocrítica sobre o que, feitas as devidas e honrosas exceções,
estamos fazendo com você, que se abriu para nós e tem recebido em troca, em vez
de flores e afagos, apenas o abandono.
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